segunda-feira, 5 de março de 2007

ELOGIO AO AMOR

Há textos assim... são aqueles parecidos com os saca-rolhas. Oferecem-nos as palavras exactas para arrancar do coração os sentimentos e torná-los livres, para lá do corpo, da boca, numa viagem à boleia do vento...





"Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.



Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.



Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?



O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alivio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "da lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.



O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.



Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do que quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.



A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E vale-la também."



Miguel Esteves Cardoso

6 comentários:

António Manuel Rodrigues disse...

Há quem, conhecendo o peso das palavras, descreva o peso dos sentimentos, a sua "insustentavél leveza"...

GRaNel disse...

É assim a visão sempre sagaz do Miguel...

Fez-me lembrar "A Causa das Coisas"... é tempo de voltar à mesinha de cabeceira.

Marta Araújo disse...

Pois é... o que é que se pode dizer?...É um texto típico do MEC, com a sua impressão digital e, na minha humilde opinião, com alguma agressividade e exagero.

Penso que ele está certíssimo em algumas coisas mas noutras, de todo, não concordo. Dizer que a vida é uma coisa e o amor é outra, e desculpa MEC não concordar contigo pá (lol), mas acho que não faz sentido.

O amor é parte integrante da vida. Certo é que, e como em tudo na vida, existem barreiras e obstáculos a ultrapassar. Ninguém disse que era fácil o amor. Se calhar porque nem todos sabemos amar ou, por outro lado, amamos de forma diferente. Ou será que o problema está naquilo que esperamos que o amor nos traga? Será que ele tem de trazer alguma coisa? Whatever...

Independentemente de sabermos o que ele é (o amor) e de o saber dar (amar) e receber da forma certa, certo é que não conseguimos viver sem ele (digo eu), porque tê-lo, senti-lo e projecta-lo é, ou pode ser, um estado de graça.

GRaNel disse...

Tens toda a razão no que dizes Marta e deixa-me acrescentar que é dos textos que li teus, o que mais gosto. Sem dúvida alguma.

Beijinho a todas as meninas do clube

Anónimo disse...

Pois eu demito-me!
Viverei em eterno desamor. Já sem dor nem felicidade, já sem resquicios de melancolia e de esperança abandono o altar sagrado e saio deste templo de inocência e crença.

Não creio mais no amor!

Marta Araújo disse...

Não sei se estás a brincar ou a falar a sério. De qualquer das formas, até podes dizer que te demites Jorge mas o amor é daquelas coisas às quais, digo eu, não podemos fugir.
Podemos tentar, é certo, e até podemos consegui-lo, ou achar que o conseguimos, durante algum período de tempo, mas quando menos esperamos ele bate-nos à porta.
Se calhar não pela pessoa certa, ou talvez sim embora possa não o parecer à primeira vista (whatever...), mas baixar os braços e desistir dele penso que causa ainda mais sofrimento.
E não me acredito que, no fundo, bem no fundo, não acredites no amor. Por mais desencontros, contratempos, desilusões, sofrimento, e todos esses sentimentos que por vezes marcam presença no coração, eu acredito no amor. Não acredito que possamos viver minimamente felizes sem essa capacidade de acreditar e sentir. Caso contrário ficamos amargos, demasiado sérios e a vida é curta de mais para esse estado de espírito.
Quanto a sermos correspondidos ou não...isso já é outra conversa. Pois olha que eu não me demito! Continuo a acreditar e sei que o vou encontrar (nem sei quando, onde, como, nem porquê...mas certo é que acredito)!