segunda-feira, 26 de março de 2007

A Devida Comédia

Por Miguel Carvalho, in Visão

"A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.

A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.

A criancinha quer camisola adidas e ténis Nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.

A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.

A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua. Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.

Desperta. É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares. A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.

A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.

A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».

Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal. Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».

A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».

Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha? Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos."

PS - Ando a perguntar-me, há já algum tempo, para quando a nossa "revolução dos suburbios", e se será nos suburbios...

2 comentários:

Anónimo disse...

A criancinha é a filh@ dos que fizeram o 25 de Abril, não é? São os nossos baby boomers. Somos todos um bocadinho baby boomers por aqui. A revolução virá quando menos se espera ou não virá jamais.
Obrigado pelo texto.

Aguia disse...

Bem adorei o post.. clap clap clap... acho que esta criancinha e vitima desta sociedade global do politicamente correcto, das redomas de vidro que se cria a volta delas, do " não te sujes porque essa roupa foi cara"... essa criancinha é um bebe proveta...

dois casos veridicos que ouvi a uns anos.
"... a palavra bolo de aniversario deve ser retirada dos livros de escola, pois a crianças que não teem dinheiro apra terem bolos de aniversario, e isso deixa-as deprimidas..." e a outra historia "... foi retirada de um livro do ensino primario a historia de um cego que subiu uma montanha, pois os cegos que nao conseguirem subri esta montanha iram se sentir desapontados, e os que tentarem iram magoar-se".. estas duas historias sao dos E.U.A. mas nao tarda nada chegaram cá... Maldita sociedade do politicamente correcto

abraços