Esvazio a casa em plena mudança. E encontro fotografias e cartas que ficaram de amores passados...
O CORAÇÃO é elástico quando somos adolescentes e estúpidos. Esvazio a casa em plena mudança. E encontro, perdidas em gavetas, fotografias e cartas e vestígios de areia que ficaram de verões passados. Amores de um mês, conhecimentos de praia que foram como vieram, mesmo quando nesse tempo tudo parecia eterno e as promessas tinham o peso das declarações definitivas. Eu nunca vou te esquecer, diziam os dois. Despediam-se, choravam, havia uma orquestra imaginária que descia dos céus. As ondas imolavam-se contra as rochas, como num filme de Hitchcock. Nas semanas seguintes, as cartas trocavam-se com uma urgência só concedida aos amantes nas óperas clássicas. Combinavam-se prazos. Memorizavam-se estações ferroviárias, como nos filmes franceses tão cheios de tristeza e neblina. "Eu estarei lá." Mas a vida intrometia-se entretanto, o Outono chegava para arrefecer os corpos e havia cartas mais esparsas -uma por semana, uma por mês- até só restar silêncio e memória e mais nada. Ficaram fotografias. Que será feito dessa garota de Birmingham, que conheci no sul de Portugal, e com que me via de fraque e cartola a subir ao altar? Tinha o mais belo nome que uma criatura pode ter (Dawn, "madrugada") e as cartas, dela, alternando na cor (rosa, azul, verde) e polvilhadas por estrelas brilhantes que se colavam ao papel como maquiagem nas faces de uma corista, prometiam tudo e exigiam tudo. O mesmo para uma belga, que conheci em circunstâncias semelhantes e que em circunstâncias semelhantes fui esquecendo, ou por quem fui esquecido. Imagino-as casadas, hoje, e na limpeza sazonal da casa, talvez na fase do divórcio, uma delas encontrará a fotografia perdida de um adolescente português. Alguém perguntará quem é o personagem do retrato. Elas dirão que não sabem, ou não se lembram. E sorrirão por dentro, como normalmente sorrimos com um segredo, ou uma piada privada. O coração é elástico quando somos adolescentes e estúpidos. Morremos várias vezes, ressuscitamos várias vezes. Usamos e abusamos desse músculo que bate apressadamente no peito como um tambor festivo porque acreditamos que a festa é móvel, como na Paris de Hemingway, um carrossel que não pára nunca, e que cada tristeza será redimida por uma nova alegria triste. Mas envelhecemos. O coração bate mais devagar. As ondas não rebentam contra as rochas ao som da orquestra: são agora espuma lenta e cansada, como nós, e apenas se exaltam com a regularidade cósmica de um ciclo lunar. Arrumo tudo numa caixa e pergunto se vale a pena. Sim, se vale a pena levar o passado comigo e arrumá-lo num sótão, que será um dia revolvido por filhos ou netos. Não vale a pena. Mas então o homem das mudanças entra em casa e avisa que o carro está à espera. E pergunta se a última caixa é para levar. O coração só é elástico quando somos adolescentes e estúpidos. Sorrindo por dentro, como sorrimos com um segredo, ou uma piada privada, digo que sim, que é para levar. Mas aviso: transporte com cuidado, por favor. Nada é mais frágil do que o passado.
JOÃO PEREIRA COUTINHO (JOVEM ESCRITOR PORTUGUÊS)
3 comentários:
Talvez um dia responda a este texto do JPC com outro texto, já que a estas coisas não se responde assim, com leviandade. Belo texto!
Também acho o texto bonito. Sem dúvida. Mas não concordo com algumas coisas. Se calhar é só uma questão de semântica mas não acho que "o coração é elástico quando somos adolescentes e estúpidos" ou com a ideia de que "nada é mais frágil do que o passado".
Não é ser do contra. É apenas uma opinião. Mas estou com o Jorge, "a estas coisas não se responde assim, com leviandade".
Não conhecia a escrita de Joºao Pereira Coutinho. Pelo excerto que aqui nos deixaste parece-me o principio de uma boa relação. Obrigado pela partilha.
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