terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Pode ou não falar-se o fado?

Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar

Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando há traição, ciúme e morte
E um coração a bater forte

Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
No dia de procissão
Da Senhora da Saúde

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama

Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:

Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar

Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca
Mas não marca
a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar duma esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele
E então
E o ciúme chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Ah
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar

E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir

Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.


Começo pelo fim e pela derradeira questão, digam lá se pode ou não falar-se o fado?
Se o fado é poesia, como a Cláudia nos explicou e demonstrou a resposta é óbvia!

A última sessão já vai um pouco longe mas as palavras fincaram-se em mim. Podemos viver uma vida passando ao largo da Poesia, mas quando escutamos quem ama a Poesia é impossivel sermos-lhe indiferente.
Dizia-nos a Cláudia que “nasceu” para a poesia com João Villaret e a sua forma apaixonada de dizer a poesia. Com ele aprendeu o ritmo da frase, a intensidade da palavra, o falsete da sílaba. E graças a ele nos fez percorrer uma viagem pela grande lingua mátria. Herberto Helder, Adília Lopes, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, Sophia Mello Breyner foram alguns dos autores que seleccionou para demonstrar o seu amor.
Mas fez mais do que isso. Disse-nos que a poesia é para ser sentida, e então decidiu vestir-nos a alma com alguns poemas. A mim coube-me Pablo Neruda, e assim de relance lembro-me que o Granel foi vestido por Mário Henrique-Leiria, o Spranger por Craveirinha, o Vitor por Boris Vian, a Ana e a Helena por Cecília Meireles. Cada um dos presenteados foi seguramente bem vestido, pois cada um (com uma ou outra excepção perfeitamente justificada) foi capaz de a ajustar à sua alma e transmitir-nos pela sua voz as palavras que recebeu. E o seu digno propósito foi plenamente atingido. Vi nos olhos da Marta, ouvi nos tambores do Rui, senti na incredulidade do Granel.
E a poesia dita pela Cláudia voltou a inundar a sala. Tempo de sonhar com um verso em branco à espera de um futuro roubado de “No teu poema” de José Luís Tinoco, e de experimentar a fúria da paixão, o descontrole do amor no “Fado falado” de Aníbal Nazaré.

A minha resposta à questão já cá está, agora digam vocês se pode ou não falar-se o fado?

7 comentários:

GRaNel disse...

"Podemos viver uma vida passando ao largo da Poesia, mas quando escutamos quem ama a Poesia é impossivel sermos-lhe indiferente" É bem verdade Vieira. Esta frase resume a minha forma de relacionamento com a poesia. E é exctamente por isso, que a sessão da Cláudia foi tão especial. Porque me abriu as portas da Poesia, porque me fez sentir, porque me fez pensar... obrigado Cláudia.

Parabéns tambem ao Vieira pelo post.

Marta Araújo disse...

A Poesia é um veículo de comunicação extremamente belo. Mas ouvi-la e senti-la através da Cláudia foi, sem qualquer margem para dúvida, um fantástico momento.

Tens uma relação muito especial, e muita "tua", com a Poesia e obrigada por a teres partilhado connosco.

Obrigada também pelo carácter personalizado que conseguiste imprimir na tua sessão. De facto é bem verdade que a vida não é feita de palavras mas sim de actos. Adorei o poema que escolhestes para mim mas fiquei ainda mais encantada com o gesto em si.

O post do Vieira está, como não podia deixar de ser, muito bom. Parabéns aos dois!

Mosquitto disse...

Olá

Obrigado pela poesia com que nos presenteaste e pelo "cheiro a África" segundo o Herberto Helder. Gostei!
Um abraço

Vitor Elyseu disse...

o Vieira é candidado nº1 ao oscar de melhor postador do clube(e quanto ao resto puta que os pariu).quanto à Claudia só posso agradecer o facto de dois dias após a sua sessão ter lido em jeito blues um poema de Álvaro de Campos que eu adoro como o raio na noite do General.Obrigado pela minha roupagem poética.

Rui Spranger disse...

Que posso mais eu dizer???
O Vieira disse tudo!
A sessão foi extraordinária e claro que eu tive um gostinho especial por ela. Aliás, ultimamente tenho tido sempre esse gostinho especial. É a vantagem de se ter muitas paixões!
Obrigado, Claudia.

Anónimo disse...

Com pena de não ter ido à sessão, resta-me agradecer o poema do Daniel Faria que é certamente muito maior do que eu.

Parabéns ao Vieira, pelo voluntariado e pelo post em si.

hörster disse...

Gostei imenso da sessão da Cláudia. Confesso não ser grande admiradora de poemas. Mas existem pessoas que conseguem transformar poemas em poesia e a Cláudia é uma delas.
Adorei o pormenor do poema escolhido e dedicado a cada um de nós, pormenor que a todos nos tocou.
E acho que também ninguém ficou indiferente à forma como foi vivida o poema que a Cláudia deixou ficar para último.
Uma noite calma, tranquila e serena, onde também se ouviu música, se viajou e se sentiu.

Obrigada e parabéns aos dois!
(Sim, aos dois porque a Cláudia escolheu os poemas mas depois ainda passaram pela mão da censura!)