quarta-feira, 5 de julho de 2006

Vieira Marques

A notícia assombrou-me a meio da sessão dos pinguins quando uma voz fina e triste me sussurrou ao ouvido via telemóvel: “O Vieira Marques morreu!”. O meu contacto com o Vieira Marques nunca foi muito próximo e nunca foi directo, mas foi o suficiente para a notícia me deixar um pouco abalado, não por ser uma surpresa, acho que já todos estávamos um pouco à espera, mas por muito preparado que estejamos ficamos sempre um pouco abalados. É mais uma grande perda para a história do cinema português!


Vieira Marques era das últimas pessoas que amava verdadeiramente o cinema em Portugal. Abandonou o seminarismo, segundo dizem, por causa de uma mulher, mas a coisa não parece ter dado muito certo e a partir daí dedicou toda a sua vida e paixão ao cinema. Conseguia ver os filmes antes de eles passarem pela terrível censura da igreja (quem não se lembra dessa fabulosa cena do “Cinema Paraíso”?) em estado bruto, com todas as cenas “picantes” e lia imenso sobre cinema, viajando muitas vezes para França para ver os filmes que não conseguia ver cá. A sua paixão pelo cinema aumentou e fez com que desejasse trazer para Portugal filmes raros, de culto ou obras-primas que raramente chegavam cá, por isso criou um Festival de Cinema. (Estamos a falar de uma época anterior ao vídeo, se é que alguém se lembra disso…)
José Vieira Marques foi durante 31 anos director do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz (FICFF) até 2002, data do último festival. O FICFF foi durante anos o melhor festival de cinema de Portugal, responsável por pôr a Figueira da Foz nos mapas internacionais. Chegavam a vir realizadores dos quatro cantos do mundo com as bobines nas mãos, na esperança de ver os seus filmes passados no certame, pois não tinham conseguido enviar a tempo da selecção e chegaram-se mesmo a criar várias sessões especiais, fora calendário, para poder mostrar algumas dessas relíquias, mesmo que não entrassem na competição.
O FICFF tornou-se um ícone dos amantes de cinema e “nasceram” lá muitos cineastas que hoje estão no activo, como António Pedro Vasconcelos, por exemplo. Foi um festival que também apostou bastante no Manoel de Oliveira, quando este ainda não era reconhecido no estrangeiro, tendo uma vez a coragem de passar a concurso a versão integral do filme “Francisca (1981)” (com 6 horas de filme, ou 9 horas, agora não me recordo), numa sessão de porta aberta, que as pessoas podiam entrar a sair à vontade.
O FICFF foi durante muito tempo a única oportunidade de ver filmes de qualidade que nunca passariam no circuito comercial português e que muito dificilmente se voltaria a ver na vida, o que originou que se tornasse um lugar de culto e ponto de encontro para a comunidade cinéfila portuguesa (é claro que o crescimento mercado vídeo, veio prejudicar isto a longo prazo…).
Vieira Marques foi o criador, o programador, o mentor do Festival. O FICFF era ele e só ele! Talvez tenha sido esse o factor que levou ao posterior encerramento do festival quando a doença dele se começou a agravar. Já diziam os meus professores: “Não queiram ser vocês a fazer tudo. Kubrick houve só um!”. Mas a sua cultura, o seu “background” e a sua luta pela divulgação do cinema levou-o a ser júri em muitos festivais internacionais, como o de Veneza, e chegou a ser dos pouquíssimos portugueses a sentarem-se na mesa de Júri de Cannes!!! (Não estamos apenas a falar de um teórico ou de um simples entendido. Estamos a falar de uma pessoa que respirava cinema e cujo celulóide lhe passava nas veias. Estamos a falar de um guru!)


José Vieira Marques foi também professor do Curso de Tecnologia da Comunicação Audiovisual no Instituto Politécnico do Porto, onde leccionou História Crítica do Cinema e do Vídeo e Análise de Filmes e estava a preparar um livro sobre a História do Cinema. Era das pessoas mais cultas sobre cinema em Portugal, um excelente contador de histórias porque tinha corrido mundo e convivido com grandes nomes do cinema como Marcello Mastroianni, Michelangelo Antonioni, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard e, mais recentemente, Danny Boyle entre muitos, muitos outros que passaram ao longo de 31 anos de FICFF e por isso me arrepio só de pensar como seria o livro dele sobre a História do Cinema. Uma bíblia para o mundo que se perde num país que se calhar não a merecia…

2 comentários:

António Manuel Rodrigues disse...

Não conheci o Vieira Marques nem o festival da Figueira infelizmente, mas conheci o que isso significava, o gosto pelo cinema... O contacto com alguns cineastas deu-me essa alegria!

Contra o teu pessimismo ("Uma bíblia para o mundo que se perde num país que se calhar não a merecia…" lembra-te que as pessoas não morrem, somos nós que as matamos na nossa memória...

Unknown disse...

Às vezes sentimo-nos muito mais tristes com a morte daqueles que não foram reconhecidos pela grande massa, pois o seu contributo merecia isso. Senti isso muitas vezes e compreendo o que dizes perfeitamente. Chamo a isso dor cultural!

No entanto, não posso deixar de «condenar» a mesma frase que o Tó referiu, mas por outro motivo. Eu considero a cultura geral, ou específica uma futilidade se ela não for partilhada com todos os homens. De que me adianta um conhecimento vasto em cinema senão o partilhar com os outros (não só os que me rodeiam, como também o grande público)? É aí que está a grandeza de Vieira Marques! Não só dar oportunidade ao participantes no festival como também dar ao grande público a oportunidade de assistir.

Não podemos achar que o país não merece tal obra. Devemos sim esperar que quem tenha convivido com ele de perto tenha aprendido alguma coisa para que um dia uma obra destas possa surgir. Só desta forma podemos descobrir o passado (já que não somos da época anterior ao video).