Sei que não é disso que Eugénio de Andrade escreve quando passa ao papel o grito "É urgente destruir certas palavras,/ Ódio, solidão e crueldade,/ Alguns lamentos,/ muitas espadas." Ou talvez seja e o postador é incapaz de ir além da compreensão do poema para lá das circunstâncias em que se encontra. Eu sei que a paixão que nos foi transmitida, havia já entrado este dia, pelo Vasco, não é a da guerra, não é a daquele monstruoso general espanhol que gritava "Viva la Muerte" (numa sala em Salamanca, reza uma lenda, onde António Machado tinha acabado de falar sobre a cultura portuguesa) quando as tropas nazis se preparavam para estilhaçar a Europa. Mas a paixão sobre Segunda Guerra Mundial, os contornos que a anteciparam e que a fizeram grassar vidas, Vida, para a alegria daquele moribundo espanhol que apenas respirava, e expirava ódio e crueldade, foi trazida ao clube através de um filme, "A Queda", que mostra tudo, mostrando muito pouco. Mostra que é preciso gritos como o de Eugénio de Andrade para que nos libertemos dos hinos à morte. Antes de dormir, e já depois de ter fechado os olhos, é preciso o poema para que tente, pelo menos o postador, apagar nem que seja por umas horas, o horror da morte, da crueldade, do ódio, da solidão, da cegueira, da ceifa que significa uma guerra. O pesadelo da possibilidade que venha um novo general a gritar vivas à morte e o pesadelo real da noite persistem, apesar de o poema continuar com outros gritos fortes, de que "É urgente inventar alegria,/ multiplicar os beijos, as searas,/ é urgente descobrir rosas e rios/ e manhãs claras." Numa manhã clara em que o fim da Segunda Guerra se anunciava, estava a dias de acabar, um conjunto de mães, maridos mortos-vivos nas trincheiras vêem os filhos perecer perante os seus olhos. O horror não parava. "Cai o silêncio nos ombros e a luz/ impura, até doer." Foi assim n'"A Queda", foi assim, multiplicado por milhares a horas da queda definitiva do regime nazi. Foi assim em outras tantas guerras em que o ser humano se transforma em monstro, vil, astuto, guerreiro, um merdas. A guerra apura os sentidos aos que a combatem, aperfeiçoa os instrumentos que depois se tornam usáveis por todos nós (as auto-estradas, o carros do povo - o volkswagen -, contava o Vasco em relação aos nazis), deixa dementes os seus líderes, os que se escondem em bunkers. A vertigem da guerra torna os negociadores mais aptos, salvaguarda normas que virão a dar em direitos que chamamos humanos, ajuda a definir ideais e horrores, obriga a escolher entre bons e maus. A guerra, esta guerra, fez-se de palavras que é urgente "destruir", usando o eufemismo de Eugénio de Andrade: poder, comando, obediência cega, raça, cor, religião, credo, nascimento, ascendência, morte matada... Peço desculpa se relato mais o filme e os meus medos do que a paixão do Vasco - poderá ele escrever aqui sobre ela melhor do que eu. Como quero dormir sem pesadelos, deixo apenas uma das notas que tomei no telemóvel, dita por Eva Braun à secretária cujas memórias permitiram este filme, horas antes de se suicidar, com o seu entretanto marido e líder de um povo que desprezava: "A vida vai continuar". É isso. A vida. Ou como termina o poema de Eugénio de Andrade, entre aquele 1939/1945 a viver como José Fontinha em Coimbra, "É urgente o amor, é urgente/ permanecer." É isso. A vida. Viver.