terça-feira, 2 de junho de 2020

João de Araújo Correia - Olga Pires

Há cerca de 15 dias, o Hugo Pereira lembrou que, nesta edição online do Clube dos Pinguins, ainda ninguém havia feito um teaser, antes da sessão. E, de facto, os teasers têm uma importância maior do que aquela que aparentam. Eles convocam-nos para um mistério que simboliza a essência da paixão, para além da mera aparência. Horas antes do início da sua sessão, a Olga partilhou connosco uma paisagem do Peso da Régua, lugar que sabemos ser parte integrante da sua identidade, por onde andou até chegar ao nosso encontro, nessa cidade que nos une, que é o Porto, e nesse lugar da nossa partilha – o Pinguim.
O mistério manteve a sua camada de aparência na primeira pergunta que nos fez: “se eu vos falar num médico, escritor do Douro, quem vos vem à ideia?” As respostas foram tímidas e parcas. E percebendo que não chegaríamos lá, a Olga devolveu-nos um nome – João de Araújo Correia. O desconhecimento geral proporcionou uma daquelas sessões que nos fazem terminar o dia com a certeza de que iremos acordar mais ricos e mais curiosos com novos caminhos. Juntos, temos então a nossa “terra de consortes”.
João de Araújo Correia nasceu em 1899, em Canelas, nesse paraíso natural que é o Peso da Régua. Entusiasta da grande literatura do seu tempo, acaba por se licenciar em Medicina, na cidade do Porto, sob a orientação do humanista Abel Salazar, profissão que exercerá como um “João Semana” ou, como diria mais tarde o seu neto, um “Robim dos Bosques da Medicina”. E, não obstante a sua dedicação à medicina, que jura ser acidental, e o seu amor pelo Porto, como se lá tivesse nascido, é a Canelas que regressa com a mulher e os seus cinco filhos, vítima dessa doença que tantas vezes nos assombra o espírito – “um cansaço extremo” -, dedicando-se àquele que considerava ser o seu verdadeiro ofício, o de escritor.
Influenciado pelo génio de Camilo, seguindo trilhos traçados por Trindade Coelho ou Mestre Aquilino (este que acabaria por dizer que o mestre de todos era o próprio João de Araújo Correia), o escritor concentrou-se nas idiossincrasias do povo, nos regionalismos e na natureza e foi assim quem em 1936 escreveria um opúsculo de linguagem médica popular do Alto Douro. Colaborou com diversos órgãos da imprensa, local e nacional, e compôs uma colectânea com esses contributos, contos e crónicas, publicando-os sob o nome “Sem Método – Notas sertanejas”.
O seu realismo naturalista chamou a atenção de grandes críticos literários da época, como Urbano Tavares Rodrigues ou João Bigotte Chorão. Este último tornar-se-ia no grande estudioso da sua obra, apontando a singularidade da sua escrita, a pureza e correcção da linguagem e o domínio exemplar da língua portuguesa. Araújo Correia afirmava, então, uma capacidade invulgar para transformar a linguagem popular em literatura, explorando diálogos, modos de vida e perspetivas do real, da realidade que foi observando enquanto homem e médico. A sua sensibilidade é angustiante.
A sua obra é, também, resultado da sua insistência em explorar a sua origem matricial, onde garante que todos encontramos a universalidade, sem precisar de sair pelo mundo. Esta ideia, presença constante da sua literatura, confirma-se na descrição exata dos elementos naturais, da imensidão dos regionalismos e na exploração da essência do ser humano, lembrando outros autores como Afonso Duarte, Aquilino, Torga ou Fernando Namora.
A sua inquietude e necessidade de divulgar a sua obra e a de outros autores com menos acesso ao mundo editorial fê-lo criar a editora Imprensa do Douro, ainda hoje em actividade, apesar de menos ligada à literatura. Essa sua intervenção é, talvez, o motivo para ainda hoje existir uma tertúlia no Peso da Régua com o seu nome, que se dedica à divulgação da sua obra, através de conferências e debates ou através da publicação de obras suas já há muito esgotadas e desaparecidas do alcance do grande público. Apesar dessa dificuldade de publicação, João de Araújo Correia é um dos autores do Plano Nacional de Leitura e o seu nome foi atribuído à escola secundária, onde a nossa anfitriã, Olga Pires, estudou. E eis um bom motivo para terminar esta já enfadonha crónica.
Não sei distinguir, ao certo, o momento em que a paixão da Olga se metamorfoseou. É, aliás, difícil dizer com toda a certeza se a Olga nos quis falar de João de Araújo Correia ou se, através das suas palavras e da sua missão, quis connosco partilhar a sua paixão pela raiz da sua essência – o Peso da Régua. E, na verdade, isso é um pouco indiferente, na medida em que tudo isso se mistura em nós com naturalidade: a nossa linguagem; o cheiro da terra; o som do vento nas árvores; o quotidiano das nossas gentes; os costumes que reconhecemos e que tantas vezes nos colocam dilemas entre um tempo outro e o nosso tempo. Mas é na raiz dessa essência e na crónica do tempo que passa que a identidade é matriz dos símbolos – esses símbolos que ostentamos no peito e que cativam o olhar dos outros na rua que conduz à porta da nossa casa.

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