sexta-feira, 7 de março de 2008

Assobiando a melodia mais bonita

Desço a Rua do Almada ao início da tarde. Logo no cimo da rua, dois homens parados fazem o obituário das suas relações. A idade, ou talvez a cidade, separou-os.
- O António disseram-me que parece que tinha morrido, mas não tenho a certeza. Já não o vejo há muito tempo!
- Pois eu também não - dizia o outro mais tímido.
- O Manel é que já se foi. Atiraram-no duma ponte ou o caralho!
- Pois parece que sim - respondeu o outro no mesmo tom intimidado.
Continuei o deslize à procura dessa nova baixa, esse novo centro de malta jovem e cool que se deixou seduzir pelo comércio - pelo alternativo, claro está - mantendo um espírito altamente conservador enquanto se diz libertária e liberal.
Sobem dois neo-hippies do lado esquerdo. Olham para mim com um ar cúmplice como se eu pertencesse à sua cena. Não digo o contrário, mas a cena é deles. No outro mundo, que não o da ilusão, os lojistas ficam sentados atrás do balcão com o rosto sofrido e completamente sós - contraste chocante com as cores das saias das jovens designers e os Aviator do despenteado fashion que perfuma a rua ao som dos Velvet Underground, ao sabor do fino que fez acompanhar a petinga frita.
Cá mais em cima, a chegar a Carlos Alberto, a cidade rebenta de movimentos simples e belos. Saem dos restaurantes e dos snack-bar's para os escritórios, acendem um cigarro e dão uma gargalhada, falam baixinho para o chefe não ouvir. É tudo ali. O mundo acontece ali mesmo.
Mais ao lado os alfarrabistas clean das montras pessoanas, meia dúzia de cuspidelas, os saltos altos num compasso certo pela calçada e o sol de inverno a encher de calor o corpo da cidade fria e escura.
Volto a subir o Almada. Atravesso a praça. A cidade é bela.

Entro calmamente em Serralves. O cheiro da tranquilidade e da burguesia aconchega-me na cadeira onde leio sem pressa o jornal, no dia do seu aniversário.
Ao meu lado, dois amigos discutem a relação amorosa com um elemento em comum. Falam abertamente, sem medos. Sorrio pela afirmação. Tento compreender o esquema:
- A namora com B que foi companheiro de C no passado. A parece estar interessado em romper o compromisso com B e passar a relacionar-se com C.
A conversa é, de resto, extremamente interessante. Falam de como é difícil a relação a dois, no sentido de alguma obrigatoriedade e partilha de espaço. Acompanha-os o som chato mas sofisticado de uns Saint Germain e a previsão de um sushi ao jantar. Mas desligo.
Volto ao jornal e dele saio para entrar na minha cabeça que só vê a cidade entrelaçar-se numa dança desconcertante.
O Porto é descontinuo e impaciente. Anseia por novidades e quando as tem banaliza-as. Não se sabe equilibrar. Ama-se e despreza-se com facilidade. Se vou para a baixa é porque não gosto dos burguesinhos da Foz. Se vou para a Foz é porque a baixa é suja e só dá freaks e velhos.
Esquecem a cidade como um todo. Um misto de cheiros e sabores e sons. Uma aguarela escura onde os olhos deslizam desde a torre bicuda e desconfortável até à suavidade azul do mar.
À noite, a Ribeira chora-se sozinha. Abandonaram-na. Freaks e betos preferem a esplanada piolhosa dos Leões e o som sofisticado das colunas de um plano b.
A futilidade é a mesma mas não é uniforme. Se o fosse, a cidade abraçava-se e a oferta encontrava-se com a procura num bailado de urbanidade que dá vida às ruas e transforma as cidades.
Andem às voltas, sem pressa. Ela está à vossa espera. Toda. É de todos e é bela.


publicado primeiro aqui.

3 comentários:

Anónimo disse...

Gosto das tuas imagens...

beijinho

Aguia disse...

Qunato é que escreves um livro??? Vi a cidade pelos teus olhos, ela é burguesa, tem o som do electrico, as vozes dos ardinas a vender jornais, o cheiro da fruta fresca, o tilintar das tesouras dos velhos barbeiros, e a nostalgia do sépia....

Tem os senhores de chapeu e gravata a passear com as suas mulheres. Enfim tem o cheiro, ruidos e sabores da verdadeira invicta

Anónimo disse...

Esta "imagem literaria" da cidade é excelente, fiquei com vontade de ler mais...