quarta-feira, 6 de maio de 2020

A safra pelo conteúdo, no regresso do Clube

Lima de Freitas, gravura para o livro Olhos de Água de Alves Redol

É curioso que o Jorge tenha apresentado a sua paixão, o neorrealismo português, já em processo de deixar de trabalhar no Museu do Neo-Realismo. Foi na passada quarta-feira, na primeira reunião da quarta temporada do Clube dos Pinguins, que decorreu pela primeira vez sem ser na cave. Não houve frio, calor, luz, fumo, cerveja, vinhos iguais para todos, foi cada um com o seu/a sua, em sua casa, a olhar para um ecrã de computador ou de telemóvel. Mas o que importa é a partilha das paixões, o que é que interessa a forma?

O que interessa é o conteúdo. A paixão, neste caso.

Tendo nascido em Vila Franca de Xira – um dos epicentros do neorrealismo – e vivido em S. Mamede de Infesta – onde está desde a juventude do Jorge a Casa-Museu Abel Salazar – pode dizer-se que é natural que esta paixão se desenvolvesse em alguém que se interessa pelas artes e pela cultura. Nesta jovem vida entre cidades (há nele uma paixão enorme por Lisboa, também), o Jorge descobriu um título que o podia descrever “Nasci com um passaporte de turista” aí pelos 14 anos, quando começou a ler – nas palavras dele –o livro o introduziu ao neorrealismo. Ainda no Porto.
Seguiram-se o “Gaibéus”, a descoberta do Carlos de Oliveira num poema da Antologia da Poesia Portuguesa do Eugénio de Andrade nas sessões de poesia do Pinguim.
Entretanto, em Vila Franca, onde ainda o ar guarda um cheirinho a domínio pela aristocracia rural, ao neorrealismo não era dado o destaque que o Jorge entendia que deveria ter, com a exceção do Museu do Neo-Realismo.
O fascínio ganhou, entretanto, contornos de paixão quando o Jorge deixou o Porto e, especialmente, o Pinguim. “O distanciamento fez-me perder vida cultural, tinha conversas que deixei de ter”, contou-nos, e no Museu do Neo-Realismo, com as suas publicações e exposições – “vi uma do Cunhal e fiquei doido com a capacidade de desenho de um homem que não tem formação em arte, a inteligência… e vi outras” – que motivaram a sua tentativa de sair do pelouro do turismo, onde trabalhava. “Consegui chegar ao Museu do Neo-Realismo”.

Rewind. Quem é que se oferece para escrever um post sobre a paixão de um grande amigo? Voluntarismo palerma!

Uma das coisas que aprendi com o Jorge nesta apresentação é que o neorrealismo só foi verdadeiramente conhecido depois do 25 de Abril, de tal forma foram perseguidos e censurados os seus representantes. Impedidos de publicar e de ensinar, os artistas que nasceram para a criação artística com o marxismo, a comuna de Paris e, sobretudo, a revolução popular na Rússia de 1917 foram considerados inimigos da imagem que o regime queria dar de si próprio e dos portugueses.
Com isso, nomes maiores da arte portuguesa ou feita em Portugal acabaram por ficar num segundo plano onde ainda hoje, nalguns casos, ainda estão confinados. Nomes como o de Afonso Ribeiro, quem conhece? Ou João José Cochofel ou Joaquim Namorado? Claro que Alves Redol, um dos mais completos escritores, Fernando Namora – em parte por causa da série televisiva Retalhos da Vida de um Médico – e parcialmente Carlos de Oliveira, por causa da poesia e do filme Uma Abelha na Chuva, chegarão a mais gente mas há um esquecimento que o Museu do Neorrealismo e o Jorge, em todas as ações públicas e com todas as pessoas que conhece, tenta dissipar. Como nesta sessão primeira da nova série do Clube dos Pinguins.

Quem é que se lembra de se oferecer para escrever os diálogos da quarta temporada de uma série de sucesso, a sério quem? E em isolamento, com a cabeça em água?

Seria curioso fazer esta sessão no campo, pegar em ferramentas e conversar sobre a vida, sobre o nosso dia-a-dia e encontrar aí a arte. Como o fez Alves Redol, como o fizeram os neorrealistas, os escritores, os pintores como o brasileiro Cândido Portinari, que quando veio a Portugal – por causa de um trabalho alinhado na Exposição do Mundo Português e a visão do Regime – foi ver a Lezíria, a terra do trabalho. E aí poderíamos perguntar ao Jorge, como Portinari perguntou a Mário Dionísio e Redol: “isto é tão bonito, os vossos pintores não pintam isto?”
Alguns sim. E pintavam o rosto do trabalho. E esculpiam, enquanto o deixaram José Dias Coelho - até ser assassinado. E desenhavam. E escreviam, como Soeiro Pereira Gomes que na Alhandra encontra os esteiros e as crianças que trabalhavam, explorados, os “filhos dos homens que nunca foram meninos”.  E até filmaram, o Manuel Guimarães – que por isso acabou na miséria – ou o Fernando Lopes, que com uma linguagem diferente filma, contudo, o Uma Abelha na Chuva – ou os italianos, mas isso é outra história. Ou levaram ao teatro, como Bernardo Santareno, ou a música maior de mestre Lopes Graça.

E é assim? Acabas assim? Sim. Tenho 8700 caracteres de notas que disponibilizo a quem quiser e o Paulo tem o vídeo no Zoom, é só pedir. E deixo uma música que sei que o Jorge gosta.



2 comentários:

Olguinha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Olguinha disse...


Isto é tudo de um nível (a sessão e o texto que tão bem a descreve) que quase me atrevia a alterar o nome do Clube para Clube dos Pinguins Imperadores. Bravo!