quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Dias Perfeitos (2023) - Wim Wenders

Em tempo de férias, os pinguins foram ao cinema. Também merecem. O problema que se apresenta é que escrever o que seja sobre este filme será não lhe fazer justiça - a palavra que tão contida esteve, será agora usada ao desbarato, espero que me perdoem. 

Um filme que se inicia com os sons banais que anunciam uma rotina bem vincada, com a leveza (ou pesar) que isso implica, com o anunciar de uma personagem cuidadosa - no sentido de saber cuidar - atenta, meticulosa não por mero perfeccionismo mas por dedicação deliberada. Este é o nosso protagonista, que durante 45 minutos se manteve em silêncio, talvez pela inadequação das palavras à sua vida - este é Hirayama, e o filme que protagoniza. 

Anunciando-se de forma tão espetacular - Dias Perfeitos, que maravilha! - leva-nos pela rotina de Hirayama ao longo dos seus dias e semanas, algo bastante menos entusiasmante, para quem esperava histórias fantásticas e heroicas. O dia começa de forma simples: dobrar o colchão e cobertor para libertar os tatami (tapetes de palha tradicionalmente usados como chão nos quartos japoneses), lavar os dentes, fazer a barba, lavar a cara, regar variados rebentos que guarda no andar superior iluminados com luz UV, vestir a farda, comprar um café de máquina, e seguir viagem ao som de artistas dos anos 80. Vemos, ao longo do filme, que este ritual é levado a cabo com muito rigor, e mesmo em circunstâncias que o dificultariam. Afinal, dias perfeitos terão de ser semelhantes entre si, e nada como a rotina para o garantir.

Hirayama trabalha enquanto empregado de limpeza de quartos de banho públicos em Tóquio, especificamente na região de Shibuya. Para quem está menos familiarizado, Shibuya é um centro comercial e financeiro de larga escala no Japão, onde podemos encontrar gente de negócios, turistas perdidos, e pessoas sem grande ligação com quem os rodeia caso não sirvam os seus interesses momentâneos. Isto torna-se claro enquanto vamos acompanhando Hirayama no seu emprego, que desempenha de forma inquestionável, nunca ficando frustrado com o ocasional homem embriagado às 7 da manhã, com as crianças traquinas a esconderem-se umas das outras, ou com uma qualquer pessoa mais aflita, cuja urgência é incompatível com o ritmo metódico e atenção ao detalhe caraterístico do nosso protagonista.

Acordado antes do nascer do sol, Hirayama almoça algo simples no parque, tendo momentos a contemplar a natureza e o jogo de sombras a que as árvores estão acostumadas: do japonês Komorebi, a luz do sol filtrada pelos espaços das folhas de árvore. Reparamos que Hirayama presta muita atenção, ao longo dos dias, a este fenómeno e às sombras em si, chegando mesmo a tirar fotos que guarda como um hobby. Especificamente, atenta à constante mudança e flutuação das formas, posições, e espaços que as sombras assumem e ocupam. Esta talvez fosse a rotina de que mais desfrutava ao longo das horas.

O resto do dia corre como habitual: ir ao banho público, passo fulcral depois de um dia de limpeza; jantar num lugar onde já é conhecido pelo cozinheiro, que quando o vê diz Okaeri, melhor traduzido como "Bem-vindo de volta", e lhe dá um copo de água fresca e um petisco (tudo sem ele ter de pedir), dizendo ainda Otsukaresama deshita, idioma de difícil tradução que procura valorizar o trabalho árduo da outra pessoa depois de um dia longo em serviço; e o retorno a casa, onde adormece a ler livros baratos que compra semanalmente. Aos fins de semana, aproveita para se dirigir a um bar onde é recebido pela Mama, uma anfitriã, maternal não só de nome, reconfortando os seus clientes com comida quente e voz sublime.

Este é o filme, com as ausências necessárias a manter alguns segredos vivos. Se o enredo não vos entusiasma, é porque não é esse o seu foco. Wim Wenders, mas mais ainda Koji Yakusho (a ator principal), procuram mostrar-nos a vida perfeita desta personagem que encontrou um semblante de paz no meio do caos de Tóquio, no trabalho duro e repetitivo a que se dedica, e na repetitividade dos seus dias. Diga-se ainda que os dias não são perfeitos como seria o céu ou a matemática: acontecem imprevistos, situações inesperadas, sentem-se emoções antigas que se julgavam sanadas, enfim, vive-se. E Hirayama vive também ao seu jeito particular, de uma forma aparentemente desligada do outro, retirando só o que precisa para viver e não mais que isso, dedicando-se de corpo inteiro a tudo o que faz, e com um respeito incalculável pelo que o rodeia. 

De várias leituras possíveis, esta é a minha: Hirayama aprendeu a viver depois de ter vivido. Aprendeu que as palavras não eram suficientes - e talvez até contraproducentes ao que se quer - e que o silêncio preenchia melhor o espaço. Aprendeu a cuidar, sem qualquer suporte ou retaguarda, fazendo-o de forma genuína sem esperar retorno. Aprendeu a observar o outro, interação que o nutre mais do que outras formas (veja-se só como reage ao receber um beijinho na bochecha), mantendo a sua distância, tal como as árvores estão longe do sol, recebendo apenas a luz. E aprendeu, talvez esta a lição mais valiosa que as restantes, que a mágoa não impede a felicidade, e que a felicidade não desfaz o que nos magoa - que é possível viver com tudo por inteiro. 

Outras divagações serão possíveis, aliás, porque o filme a isso se presta, por isso a minha recomendação (e falando também pelos restantes) é de que vejam o filme, nem que não seja pelo simples facto de que ver Hirayama sorrir é, de si, algo muito reconfortante. Até uma próxima, esta foi a crónica não anunciada sobre a sessão de dia 7 de agosto de 2024, um dia como os outros, e por isso mesmo perfeito.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Pernas, para que vos quero: Coupling, humor britânico, e a essência de Jeff em cada um de nós

Quem nunca sonhou em ter um grupo de amigos? Quem é que não gostaria de se sentir suportado nas suas desaventuras por pessoas que nos acompanham desde sempre, ou desde cedo? Quem é que nunca mentiu sobre o número de pernas que... esperem, adianto-me, voltemos ao princípio.

No dia 31 de julho a Olga presenteou-nos com uma sessão apropriada à data, o bem sabido melhor dia para casar, como reza a lenda (sendo essa o Quim Barreiros). Inicialmente, procurou inflamar os ânimos dos demais, revelando que iríamos ver episódios de uma série, por nota sua favorita, e que faria os Friends parecerem amigos de infantário; ela não verbalizou exatamente desta forma, mas senti-o nas suas palavras. 

Introduziu-nos o título, Coupling, uma série britânica que se manteve no ar entre 2000 e 2004. Diriam agora, vocês, leitores suspeitos e céticos, que Friends durou 10 anos a terminar, e que por simples aritmética seria superior em qualidade e quantidade. Aqui, justificamos a origem do fim, por assim dizer: um dos potenciais motivos do término antecipado desta brilhante sitcom terá sido a escolha de um dos atores em não dar seguimento à sua personagem, por medo de ficar a ela eternamente associado. De agora em diante, este ator não terá nome, e será apenas conhecido por Jeff, vingança mesquinha à qual temos direito. Para além disto, e como Coupling bem nos ensina, às vezes ter a mais nem sempre é sinal de prosperidade: seja essa abundância em termos de temporadas, apelo ao mainstream, ou número de membros do corpo.

O que se seguiu no decorrer da sessão foram dois brilhantes episódios de televisão e, mais especificamente, de humor britânico, que nos transportaram para Londres, experienciada pelas peripécias deste grupo insólito de 6 amigos unidos por um fio comum: a sua propensão, ou necessidade quase compulsiva, ou possivelmente tédio existencial que os levava a terem como foco das suas vidas e conversas o tema dos relacionamentos. E do sexo. As pessoas gostam, gostaram, e imagino que gostarão de falar desse tópico, por ser algo que toca a todos, passando a expressão provocadora.

[DISCLAIMER]: as opiniões que se seguem são fruto da visão idiossincrática do autor, baseadas na breve exposição que teve à série em questão. Não refletem as opiniões dos restantes elementos do clube, nem a tal almejam.


O grupo, personagem principal, é constituído por 6 membros (às vezes, mais membros é algo bom, mas nem sempre): Steve e Susan, o casal que se mostrou mais preocupado em conhecer relacionamentos alheios do que em solucionar os problemas acumulados ao seu próprio, ao ponto de se terem passado por franceses e australianos não numa tentativa de apimentar a vida, mas de esconderem um ao outro as inseguranças quasinevitáveis a qualquer relação duradoura; Jane, que surge do mesmo sangue, da mesma essência, do mesmo arquétipo de mulher despachada, segura de si, orgulhosamente sexual que informou outras personagens como Samantha Jones de Sex and the City, comparação que não consegui deixar de tecer durante os episódios, e que se tornará auto-evidente quando tu, leitor, te debruçares sobre ambas as séries em questão; Patrick, o mulherengo inevitável numa sitcom focada em relacionamentos, e que utiliza a sua sabedoria e, de certa forma, a sua arte para tentar encaminhar os seus amigos e amigas, embora o caminho seja sempre o mesmo, e o resultado também - sexo descomprometido; Sally, que se mostrava insistente em estar em relacionamentos, não pelo prazer e companhia que derivaria destes, mas antes porque precisa de um projeto com o qual se entreter, e nada melhor que um homem, pedaço de mármore por esculpir e que tanta resistência mostra a esse processo (estaria melhor servida com um hobby, mas quem sou eu para julgar); e, por fim, Jeff.

A Jeff dedico um novo parágrafo. A Jeff devemos muita coisa, nem que seja um episódio inteiro em que se fingiu amputado para conseguir a nuca dos seus sonhos, quer dizer a perna dos seus sonhos, quer dizer a mulher dos seus sonhos. Jeff, que se demonstrou pronto a saltar em frente ao proverbial comboio em andamento numa tentativa de salvar o seu amigo, dizendo que SIM, ELE MESMO seria Dick Darlington num mundo de Giselles (isto fará mais sentido depois de verem o episódio mas para quem o viu vai ter piada, confiem). Jeff, com a sua cara meio pálida à luz do projetor, com o seu jeito por um lado nervoso, por outro plenamente seguro de si como acontece muitas vezes a quem sente uma corrente de ar por entre os ouvidos, Jeff, este anjo caído não por pecado mas porque certamente tropeçou numa nuvem, representa o que todos nós somos a algum nível: pessoas à procura de pessoas, por vezes de formas tão intensas que nos esquecemos do nosso corpo, que nos esquecemos que temos um corpo, que nos esquecemos que o nosso corpo afinal está melhor do que o esperado e que não vamos conseguir dar mais de nós porque, literalmente, temos a mais para dar. Atire a primeira pedra quem nunca fingiu ser amputado para engatar uma pessoa.

Que isto desperte em vós a curiosidade para darem a esta série a oportunidade que merece. Eu sei que vou ver os restantes episódios de forma semi-compulsiva, sobretudo porque tenho um forte ponto fraco por humor britânico.

E lembrem-se, como diz Mateus, 19:24, numa versão da Bíblia que já não está em circulação: mais fácil é a um camelo passar pelo olho de uma agulha, do que um homem de duas pernas entrar pelas portas do paraíso. 

Pernas, para que vos quero, quando uma me bastava para ser feliz. Um bem haja, e até uma próxima!