Em tempo de férias, os pinguins foram ao cinema. Também merecem. O problema que se apresenta é que escrever o que seja sobre este filme será não lhe fazer justiça - a palavra que tão contida esteve, será agora usada ao desbarato, espero que me perdoem.
Um filme que se inicia com os sons banais que anunciam uma rotina bem vincada, com a leveza (ou pesar) que isso implica, com o anunciar de uma personagem cuidadosa - no sentido de saber cuidar - atenta, meticulosa não por mero perfeccionismo mas por dedicação deliberada. Este é o nosso protagonista, que durante 45 minutos se manteve em silêncio, talvez pela inadequação das palavras à sua vida - este é Hirayama, e o filme que protagoniza.
Anunciando-se de forma tão espetacular - Dias Perfeitos, que maravilha! - leva-nos pela rotina de Hirayama ao longo dos seus dias e semanas, algo bastante menos entusiasmante, para quem esperava histórias fantásticas e heroicas. O dia começa de forma simples: dobrar o colchão e cobertor para libertar os tatami (tapetes de palha tradicionalmente usados como chão nos quartos japoneses), lavar os dentes, fazer a barba, lavar a cara, regar variados rebentos que guarda no andar superior iluminados com luz UV, vestir a farda, comprar um café de máquina, e seguir viagem ao som de artistas dos anos 80. Vemos, ao longo do filme, que este ritual é levado a cabo com muito rigor, e mesmo em circunstâncias que o dificultariam. Afinal, dias perfeitos terão de ser semelhantes entre si, e nada como a rotina para o garantir.
Hirayama trabalha enquanto empregado de limpeza de quartos de banho públicos em Tóquio, especificamente na região de Shibuya. Para quem está menos familiarizado, Shibuya é um centro comercial e financeiro de larga escala no Japão, onde podemos encontrar gente de negócios, turistas perdidos, e pessoas sem grande ligação com quem os rodeia caso não sirvam os seus interesses momentâneos. Isto torna-se claro enquanto vamos acompanhando Hirayama no seu emprego, que desempenha de forma inquestionável, nunca ficando frustrado com o ocasional homem embriagado às 7 da manhã, com as crianças traquinas a esconderem-se umas das outras, ou com uma qualquer pessoa mais aflita, cuja urgência é incompatível com o ritmo metódico e atenção ao detalhe caraterístico do nosso protagonista.
Acordado antes do nascer do sol, Hirayama almoça algo simples no parque, tendo momentos a contemplar a natureza e o jogo de sombras a que as árvores estão acostumadas: do japonês Komorebi, a luz do sol filtrada pelos espaços das folhas de árvore. Reparamos que Hirayama presta muita atenção, ao longo dos dias, a este fenómeno e às sombras em si, chegando mesmo a tirar fotos que guarda como um hobby. Especificamente, atenta à constante mudança e flutuação das formas, posições, e espaços que as sombras assumem e ocupam. Esta talvez fosse a rotina de que mais desfrutava ao longo das horas.
O resto do dia corre como habitual: ir ao banho público, passo fulcral depois de um dia de limpeza; jantar num lugar onde já é conhecido pelo cozinheiro, que quando o vê diz Okaeri, melhor traduzido como "Bem-vindo de volta", e lhe dá um copo de água fresca e um petisco (tudo sem ele ter de pedir), dizendo ainda Otsukaresama deshita, idioma de difícil tradução que procura valorizar o trabalho árduo da outra pessoa depois de um dia longo em serviço; e o retorno a casa, onde adormece a ler livros baratos que compra semanalmente. Aos fins de semana, aproveita para se dirigir a um bar onde é recebido pela Mama, uma anfitriã, maternal não só de nome, reconfortando os seus clientes com comida quente e voz sublime.
Este é o filme, com as ausências necessárias a manter alguns segredos vivos. Se o enredo não vos entusiasma, é porque não é esse o seu foco. Wim Wenders, mas mais ainda Koji Yakusho (a ator principal), procuram mostrar-nos a vida perfeita desta personagem que encontrou um semblante de paz no meio do caos de Tóquio, no trabalho duro e repetitivo a que se dedica, e na repetitividade dos seus dias. Diga-se ainda que os dias não são perfeitos como seria o céu ou a matemática: acontecem imprevistos, situações inesperadas, sentem-se emoções antigas que se julgavam sanadas, enfim, vive-se. E Hirayama vive também ao seu jeito particular, de uma forma aparentemente desligada do outro, retirando só o que precisa para viver e não mais que isso, dedicando-se de corpo inteiro a tudo o que faz, e com um respeito incalculável pelo que o rodeia.
De várias leituras possíveis, esta é a minha: Hirayama aprendeu a viver depois de ter vivido. Aprendeu que as palavras não eram suficientes - e talvez até contraproducentes ao que se quer - e que o silêncio preenchia melhor o espaço. Aprendeu a cuidar, sem qualquer suporte ou retaguarda, fazendo-o de forma genuína sem esperar retorno. Aprendeu a observar o outro, interação que o nutre mais do que outras formas (veja-se só como reage ao receber um beijinho na bochecha), mantendo a sua distância, tal como as árvores estão longe do sol, recebendo apenas a luz. E aprendeu, talvez esta a lição mais valiosa que as restantes, que a mágoa não impede a felicidade, e que a felicidade não desfaz o que nos magoa - que é possível viver com tudo por inteiro.
Outras divagações serão possíveis, aliás, porque o filme a isso se presta, por isso a minha recomendação (e falando também pelos restantes) é de que vejam o filme, nem que não seja pelo simples facto de que ver Hirayama sorrir é, de si, algo muito reconfortante. Até uma próxima, esta foi a crónica não anunciada sobre a sessão de dia 7 de agosto de 2024, um dia como os outros, e por isso mesmo perfeito.